2 de janeiro de 2010

As Falls Wichita


Alternava na noite acompanhada de uma pequena nausea não própriamente pelo senso comum de dar a velhos marinheiros bêbados momentos de extase e corrimentos seminais, não pela sua condição de mãe solteira vigiada de perto pelo Toninho da Pistola, sempre pronto a aprontá-las, mas pelo perigo constante de a esquina dessa noite lhe cair em cima sem lhe pedir licença. Medo era coisa que desconhecia mas encarava com dificuldade a ideia de fenecer, achava-se uma rosa com bastante vigor para levar esta vida no fio da navalha.

O que a mantinha com a alma quente eram passagens de livros onde a escrita a adornava de sensações:

«O que nas pessoas estranhas, desviadas por passo próprio ou enxotadas pelos outros, o fascinava era a absoluta liberdade individual com que faziam as suas escolhas. Num louco ou num pedinte que vagueava pelas ruas a pedir pão e sopa e que, de noite, tal qual os outros humanos, só queria dormir, Buchmann via quem poderia escolher em liberdade pura, e sem consequências, a sua moral individual. Moral que nem sequer tem um par, um elemento que a acompanhe. Quem iria contestar a «vida imoral» de um pedinte ou de um louco? Aqueles homens tinham já em si, pela sua diferença, uma carga de imoralidade universal e profunda, que os tornava imunes às pequenas imoralidades praticadas. Um louco, tal como um pedinte, não era imoral. Eram indivíduos sem cópia, semelhantes a um rei; alguém que não tem par, que não tem aquele que está ao seu lado. E por isso não há para esses homens escorraçados, como não há para o homem mais poderoso, qualquer critério de comparação. Buchmann olhava com admiração para aqueles homens que traziam no bolso um sistema jurídico único, com o seu nome no fim. De certa maneira, era isso que Buchmann desejava; ser portador de um sistema legal cujas leis só fossem aplicadas a si; ser portador de uma moral que não é a do mundo civilizado nem a do mundo primitivo; que não é a moral da cidade ou sequer a moral da sua família mas a moral que tem o seu nome, apenas o seu, escrito por cima. »

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